domingo, 8 de julho de 2018


O gabarito fosfórico

Beija-flor: caixinha de fósforos, guardada em Campinas,
ganha página em livro de Ruy Castro
Edmilson Siqueira


No dia 4 de abril de 1993, foi publicada no Correio Popular uma entrevista com Ruy Castro, que veio a Campinas promover o lançamento da biografia de Nelson Rodrigues. Como toda biografia do jornalista, era um trabalho de fôlego, simplesmente a melhor que já se publicara sobre o gênio do teatro brasileiro. À época, eu era editor-assistente do Caderno C e, fã de Ruy, fui logo me escalando para entrevistá-lo. A entrevista ocorreu numa filial da Livraria Papirus que nem existe mais, na Rua General Osório, perto do Centro de Convivência.

Quase 14 anos depois, essa entrevista voltou à minha cabeça motivada por uma série de fatos. O primeiro deles: foi a última – e perfeita – biografia escrita por Ruy Castro, a de Carmen Miranda. Sobre ela escrevi um Farol (A Maior) que começava contando um episódio do livro e que tinha a ver com Campinas: Carmen veio fazer um show no Teatro Municipal, em 1939 e, à tarde, pegou um carro emprestado de um fã e saiu dirigindo pela cidade. Na esquina da Saldanha Marinho com a Onze de Agosto, teve que desviar bruscamente de um bonde e bateu numa árvore.

Pois alguns dias depois da crônica publicada aqui na Metrópole, o jornalista Rubem Costa, que tem uma coluna semanal no Correio, do alto dos seus 87 anos, escreveu uma crônica com o título Eu estive lá. E sabem onde ele estava? No bonde do qual Carmen se desviou. Além de relatar o acidente, ele conta que esteve à noite no show, com detalhes que nem Ruy tinha no livro.

Claro que senti uma grande vontade de mandar a crônica do Rubem para o Ruy e o passo seguinte foi conseguir seu telefone ou e-mail, o que foi feito com a ajuda da editora Companhia da Letras. No e-mail que enviei ao Ruy, anexei minha crônica e a crônica do Rubem. Para me identificar, disse que era jornalista de Campinas e que o havia entrevistado há uns 14 anos, no lançamento de O Anjo Pornográfico (a biografia de Nelson Rodrigues) e que, antes de iniciar a entrevista, eu havia lhe dado uma caixinha de fósforos Beija-Flor.

Menos de dez minutos depois que enviei o e-mail ao Ruy, com as duas crônicas e a apresentação, ele respondeu. Nem tinha lido as crônicas ainda, mas estava feliz por ter descoberto quem lhe havia presenteado com a Beija-Flor, pois não se lembrava mais. E se eu quisesse saber o destino da caixinha, que comprasse seu último livro, Rio Bossa Nova – Um Roteiro Lítero-Musical, editado pela Casa da Palavra. E indicava: “Vá à pág. 30. Você a verá ao lado de um copo de uísque numa mesa do Villarino, fotografada em agosto do ano passado!”.

Minha emoção foi grande e aqui acho que cabem mais algumas explicações.

Antes da biografia de Nelson Rodrigues, Ruy havia escrito Chega de Saudade – A História e as Histórias da Bossa Nova, o melhor livro que se publicou sobre nossa melhor música e que eu havia devorado não só por ser fã da música, mas por amar o Rio de Janeiro que, com sua geografia e sua gente, foi um dos motivos da bossa nova existir. Pois nesse livro, o autor conta, na página 116, que um dos berços que embalaram a bossa nova foi a Casa Villarino, uma espécie de bar e confeitaria no centro do Rio, que está lá até hoje.

A descrição que Ruy faz da casa no livro é deliciosa: “O Villarino era (aliás, é porque ainda existe) o de que você quisesse chamá-lo. Visto de fora, era uma mercearia, que oferecia uvas argentinas, sardinhas do Báltico e um oceânico estoque de bebidas importadas. Nos fundos, convertia-se numa charmosa uisqueria, com um ligeiro clima de speakesay”. Entre os freqüentadores, Ruy destaca Paulo Mendes Campos, Antonio Maria, Sérgio Porto, Lúcio Rangel, Irineu Garcia, Ari Barroso, Haroldo Barbosa, Fernando Lobo, Paulo Soledade, Dorival Caymmi, Dolores Duran e Aracy de Almeida.

Apareciam por lá também menos amiúde Carlos Drummond de Andrade, Heitor Villa-Lobos e Vinícius de Moraes. Pois foi ali que Vinícius foi apresentado a um jovem pianista e compositor chamado Antonio Carlos Jobim.

Bom, mas o que tem a ver a caixinha de fósforos Beija-Flor com tudo isso? É Ruy de novo quem conta ao descrever a uisqueria do Villarino: “Havia meia-dúzia de mesas e os uísques da moda, Haig’s e Black Label, eram servidos por Jorge, o garçom, segundo o ‘gabarito fosfórico’ criado pelos fregueses: dose na altura de uma caixa de fósforos Beija-Flor, de pé, na vertical”.


Eu tinha duas caixinhas intactas de fósforos Beija-Flor em casa, em 1993 e nem cabe aqui explicar como elas estavam lá, pois já haviam desaparecido do mercado há muitos anos. E dei uma delas de presente ao Ruy, fato que descrevi na entrevista publicada e que até hoje recordo com certa emoção. O contato com o Ruy por causa da crônica da Carmen e, depois, do Rubem Costa, acabou me trazendo de volta acontecimentos de quase 14 anos atrás que ainda hoje têm conseqüências. 


Pois está lá, na página 30 do Rio Bossa Nova (uma edição de luxo, de capa dura, com fotos lindíssimas do Rio e texto idem) toda garbosa, a caixinha Beija-Flor em duas fotos. E numa delas exercendo seu principal papel ao lado de um prato do Villarino e um copo de uísque. Nesse livro, a caixinha também virou “personagem” no texto da página 31: “Com a generosidade de suas doses (da altura de uma caixa de fósforos Beija-Flor, em pé, na vertical, o que eles chamavam de ‘gabarito fosfórico’), cada uísque do Villarino valia por dois de outros lugares”.

A caixinha de fósforos que dei ao Ruy fazendo seu papel de "gabarito fosfórico"